20 de abril de 2021
Conversamos com a Carolina Candido, tradutora do livro As cabeças das pessoas negras, da Nafissa Thompson-Spires, lançado em fevereiro deste ano pela Nacional. Confira!
1) Carol, tudo bom? Antes de começarmos, conte um pouco sobre você.
Tudo bem sim. Eu sou a Carol Candido e sou tradutora literária e criadora de conteúdo. Me formei em Letras pela Universidade de São Paulo e atualmente faço meu mestrado em tradução pela Universidade de Lisboa. Sempre gostei muito de ler e de aprender e lidar com línguas, o que voluntariamente me empurrou na direção da carreira de tradutora. É o que eu sempre quis fazer. Tem algo de quase mágico em ajudar a transportar não só um texto de uma língua para outra, mas também uma cultura, aproximar mundos diferentes e possibilitar que pessoas possam ler livros escritos em outras línguas.
2) Como foi traduzir As cabeças das pessoas negras, da Nafissa Thompson-Spires, que publicamos em fevereiro?
Foi um desafio em muitos níveis diferentes. Desafiador primeiro porque é um livro que prende você do começo ao fim. Segundo porque a temática do livro me é muito próxima, enquanto mulher negra, então alguns contos foram pesados, mas de uma forma positiva. Tratam de temáticas que eu acho que deveriam ser mais abordadas e de uma forma que eu adoro: com ironia, com sarcasmo, quase uma sátira da realidade. Um grande desafio foi buscar, enquanto traduzia, manter toda a ironia da autora na linguagem. O estilo de escrita da Nafissa é único, e eu fiquei realmente encantada com o trabalho dela. Me tornei fã da autora e recomendo a leitura para todos.
As cabeças das pessoas negras é um livro de contos que são e não são independentes entre si. Parece confuso, mas eu explico: algumas personagens aparecem em mais de um conto, e é possível perceber que se trata de uma espécie de continuação da história. Tem-se um entrelaçamento dessas relações que exige que o tradutor redobre a atenção nas escolhas lexicais.
3) O conto que abre o livro é cheio de referências à cultura norte-americana. Como foi adaptá-lo para o português?
É engraçado que esse é um dos meus contos favoritos, exatamente pelo choque que ele causa (sem spoilers). Somos levados a um mergulho em uma cultura que, ao mesmo tempo que é americana, é muito universal, afinal trata-se de animes, algo que é originário do Japão e que encontra expoente em diversas culturas, inclusive no Brasil. Temos nossos aficionados por animes aqui. Entretanto, aposto que quando você vê um perfil no Twitter que usa figura de anime, você imagina um menino branco por trás. Logo de cara, nesse conto, temos um menino negro norte-americano quebrando estereótipo atrás de estereótipo. Ele gosta de anime, usa lentes azuis e tem cabelos loiros, mas namora uma menina negra, o que não seria esperado para a continuidade do estereótipos que temos sobre os consumidores dessa cultura. Riley, para mim, é um personagem muito complexo e uma forma que a autora encontrou de falar: “não projete suas ideias em meus personagens, eles vão surpreender você do começo ao fim”. E surpreendem. As referências de seriado são mais complicadas porque de fato são personagens que são muito citadas nos EUA, mas pouco conhecidas no Brasil. Alguns exigiram nota de rodapé, outros uma adaptação. No entanto, há muitos elementos ali que reconhecemos: a música das Destiny’s child, o estilo de Drake, o estereótipo que é aplicado aos meninos negros. É um conto complexo, mas genial. E eu chorei enquanto traduzia as partes finais dele, ao pensar no quanto aquilo representa também o nosso Brasil: no final, por mais complexa que seja a personalidade da pessoa negra, do ponto de vista dos não-negros, a história que será contada é a mesma. Distorcida.
4) O que você acha que o livro traz para a discussão a respeito de racismo e individualidade das pessoas negras?
Eu tenho vontade de obrigar as pessoas a lerem esse livro, juro. rs. É tão intenso e tão importante. Ele apresenta essa temática, como eu disse, de modo irônico, mas ao mesmo tempo, muito ilustrativo. Mais do que colocar frases didáticas que poderiam não causar o mesmo efeito, ela personifica a individualidade das pessoas negras. Ela dá uma cara ao racismo. Ela aborda, inclusive, as relações de poder dentro da comunidade negra, que tem que ser muito discutidas também. E bate na tecla que tem que ser batida: não somos todos iguais. Não nos tratem como iguais. Entendam que somos diferentes, queremos ser diferentes, podemos fazer o que queremos fazer e vocês tem que respeitar. Podemos fazer cosplay. Podemos ser youtubers de ASMR. Podemos ser biscoteiro de atenção em redes sociais. Podemos ser doutores universitários com picuinhas bobas. Somos corpos gordos, magros, baixos, altos, complexos, inteiros, profundos. E queremos ser vistos e entendidos de todas as formas que podemos ser.
É sério. Leiam esse livro. A Nafissa é uma gênia e mal posso esperar para ler os próximos livros dela.
Carol, muito obrigada pela entrevista.
E reforçamos, leiam As cabeças das pessoas negras!