07 de abril de 2021
No dia 31 de março foi publicado um artigo de Kacen Callender no site Oprah Daily. Como vamos publicar dois de seus livros, Felix Ever After e King and the Dragonflies, resolvemos traduzir o artigo para que todos possam ler.
Boa leitura!
“Celebração e amor próprio podem ser algo calmo, interno, sem a necessidade de dizer nada para o mundo”
Num artigo bastante direto, o vencedor do National Book Award Kacen Callender coloca a questão: A expectativa de que uma pessoa deveria se assumir cria inadvertidamente a narrativa de que pessoas que não se assumem são fracas e desonestas?
Nós colocamos muita pressão nas pessoas queer e trans para nos dizerem quem elas realmente são. Mas Callender sugere que em vez disso deveríamos colocar mais pressão em todas as pessoas – especialmente aquelas que são hétero e cisgênero – para que seja criado um espaço seguro, especialmente para pessoas não-brancas, que são mais vulneráveis à violência.
Se assumir deveria, acima de tudo, ser uma celebração de si mesmo. Seja publicamente ou de forma privada, depende da pessoa. Como Callender coloca de forma bem clara, “celebração e amor próprio podem ser algo calmo, interno, sem dizer nada para o mundo. Uma pessoa pode ser honesta sobre sua verdade e sua identidade consigo mesma, sem nunca precisar contar para ninguém.”
Eu não me assumi, não para todo mundo. Contei para uma pessoa da minha família que eu sou queer, trans e não-binário, mas não quis contar para mais ninguém. Não sei como eles iriam reagir às minhas identidades, principalmente porque muitas pessoas da minha família fizeram comentários anti-queer e anti-trans no passado.
Ao longo dos anos, falei abertamente sobre minhas identidades em redes sociais e em entrevistas, querendo criar maior representatividade para leitores negros, queer e transgêneros e/ou não-binários – mas algumas pessoas da minha família encontraram essas entrevistas e me fizeram perguntas: “O que os pronomes elu/elus significam? O que é ser não-binário?”. Muitos me aceitaram e me acolheram com amor, mas, pensando nisso agora, percebo que eles próprios descobriram sobre minhas identidades. Eu tecnicamente nunca me assumi para eles.
Escrevo principalmente para crianças e adolescentes. No meu livro juvenil King and the Dragonflies, o personagem principal King decide que ele não quer se assumir para ninguém, apenas para pessoas que ele mais confia e com quem se sente seguro. Enquanto escrevia a história do King, eu me perguntei o porquê de haver uma expectativa de que as pessoas vão se assumir em algum momento. Não estou criticando ninguém que escolha se assumir e celebrar que assumir as identidades delus – claro, depois de uma longa e dura batalha pelos direitos LGBTQIA+ (e com muito mais trabalho a ser feito), essa é uma opção válida também. Mas será que a expectativa molda outra narrativa que pode ser prejudicial?
Percebo que muitas vezes a pressão vem de dentro da comunidade. Nós dizemos que uma pessoa é corajosa se ela se assume, até mesmo na cara dos valentões anti-queer e anti-trans, e que uma pessoa só é honesta quando ela diz a verdade sobre sua identidade secreta. Mas nossas identidades secretas não são percebidas como as de super-heróis disfarçados – apesar de que elas deveriam ser. A suposição é que, se escolhemos manter nossa identidade em segredo, isso significa que temos vergonha de nós mesmos. Até já ouvi outras pessoas queer dizendo que é nosso dever nos assumirmos, que esse é o único jeito de nos mostrarmos orgulhosos de nós mesmos e da nossa comunidade queer.
O que isso quer dizer sobre as pessoas que não querem se assumir? Que somos mentirosos, covardes? Que não temos nenhum orgulho? Escrever para crianças significa que eu tenho em mente a segurança dos jovens leitores. Quantos jovens estão vivendo com familiares anti-queer, anti-trans, e correm o risco de serem abandonados e expulsos de casa se eles se assumirem? A juventude LGBTQIA+ representa 40% da população jovem sem casa. Quantas pessoas jovens poderiam ser agredidas, física e emocionalmente, se elas se assumirem num lugar no qual elas não estão em segurança? Será que, ao sugerimos que alguém é corajoso e honesto e forte por se assumir, estamos pressionando jovens em ambientes não-seguros a se assumirem para não serem vistos como covardes e mentirosos?
Eu me preocupo principalmente com jovens que dependem de adultos para sobreviver, mas também me preocupo com adultos independentes em situações de perigo, e com a forma com que coagimos os outros e a nós mesmos.
Com certeza devemos celebrar nossas identidades e amarmos quem somos do jeito que podemos. Mas às vezes celebração e amor próprio podem ser algo calmo, interno, sem dizer nada para o mundo. Uma pessoa pode ser honesta sobre sua verdade e sua identidade consigo mesma, sem nunca precisar contar para ninguém.
Quando estou em público é comum que confundam meu gênero, nove entre dez vezes, e eu não corrijo ninguém. Ignoro a confusão de estranhos quando eles dizem “Senhor, senhora, humm, desculpe, como eu devo te chamar?”. Devo admitir que eu adoro confundir as suposições das pessoas sobre identidades de gênero, mas, quando preciso falar e interagir com alguém, nem sempre me sinto à vontade para dizer “Eu sou não-binário, e eu uso os pronomes elu/delu.”
Pessoas trans, e especialmente o grupo vulnerável de mulheres negras trans e trans femininas, são assassinadas todos os anos em taxas muito elevadas. Muitas pessoas queer e trans são e foram agredidas e mortas por “esconderem seu segredo”. Posso sentir os olhares e às vezes até ouvir os sussurros de estranhos quando eu ando na rua: “É um homem ou mulher?” Eu queria muito estar num mundo onde estivesse seguro o suficiente para me virar com um sorriso e dizer “Nenhum desses!”. Ao contrário, eu acelero meu passo, pensando nas muitas histórias que eu li sobre pessoas que foram atacadas e mortas porque estranhos se fizeram a mesma pergunta.
Há uma vergonha cultural por não querer contar aos outros sobre as minhas identidades, uma expectativa de que eu deveria ser “corajoso” frente a um perigo em potencial. Mas por que a responsabilidade não é colocada em fazer desse mundo um lugar onde eu me sinta seguro de existir?
Tem se discutido muito na comunidade queer o termo “se assumir” e as implicações de que nós estamos “saindo do armário” (acho que é o mesmo armário sombrio que esconde esqueletos). Muitos sugeriram outra expressão no lugar: “convidar”. Se eu digo para alguém sobre minhas identidades é porque eu os estou convidando a entrar no meu mundo, compartilhando uma parte de mim com alguém que eu amo, confio e com quem me sinto seguro, não por obrigação, mas porque eu quero.
Olha que engraçado, eu acho OK dizer para o mundo inteiro num artigo como esse que eu sou queer, trans, não-binário, mas ainda há alguns membros da minha família para quem eu não vou contar, sabendo que não me sinto seguro com eles. Eu já lidei com a retórica anti-trans de trolls online, mas dói muito mais quando um membro da família, alguém que deveria te amar, vomita o mesmo tipo de ódio. Ainda há um número de pessoas na minha vida que eu ainda não convidei. E provavelmente nunca vou convidar.
E eu não acho que eu tenha a responsabilidade de contar a eles. Aliás, acho que a responsabilidade é dos outros sobre mim: de me provarem que eles são pessoas seguras, que não vão me desumanizar, que vão entender que eu mereço respeito e amor como todo ser humano no mundo.
A sociedade ainda precisa provar que é segura ao criar uma mudança sistêmica que ofereça proteções mais fortes para as pessoas trans e não-binárias, com mais suporte para lutar contra o fato de essas pessoas não terem casas e nem oportunidades de empregos estáveis (principalmente quando compõem identidades interseccionais de raça, a maior razão de mulheres negras trans e travestis serem tão vulneráveis). Culturalmente, precisamos acabar com a retórica anti-queer e anti-trans que constantemente aparece na mídia e nas discussões do dia a dia sobre identidade de gênero e expectativas de papeis de gênero, e a crença incorreta de que biologia equivale a gênero, ou de que a biologia é binária (não é).
Individualmente, uma pessoa pode me provar a sua segurança ao se educar sobre gênero e identidade sexual com recursos através da mídia e informação online. Uma pessoa pode provar a sua segurança ao estar aberta para ouvir de coração aberto, processando minhas palavras e as palavras de qualquer pessoa contra quem a sociedade foi sistematicamente construída, em vez de ficar na defensiva explicando as razões pelas quais ela acredita que eu e outros estamos errados. Uma pessoa pode provar sua segurança ao mostrar que está interessada em mudar, recebendo ou não créditos por ajudar os outros, que a aliança performativa para acalmar seu ego não é o objetivo final. Uma pessoa pode provar que é segura ao me tratar com empatia, sem precisar ter vivido as minhas experiências.
Não há espaço suficiente nesse artigo para explicar os jeitos que o mundo pode me provar que é seguro para eu existir, viver e amar meu corpo negro, queer e trans, ou para dizer como o mundo pode e deve mudar para que pessoa como eu possam andar na rua com um sorriso, gritando nossas identidades, se for isso que nós escolhemos. Porque, olha, mesmo que o mundo não seja seguro pra gente, nós ainda podemos decidir que ninguém mais precise saber sobre nossas identidades, que podemos sorrir no espelho e saber que nosso amor-próprio e orgulho sempre vão ser o suficiente.